Pastor Kaká: como é um culto do ex-jogador que atrai multidão e faz igreja virar estádio por um dia

Do acidente na infância ao brilho no Milan e às lágrimas no Real Madrid, Kaká converte vitórias e cicatrizes em mensagem espiritual num espaço onde fiéis e fãs buscam algo além do futebol
Os olhares que cercavam Kaká naquela noite não procuravam o mesmo que um dia buscaram nos gramados do Morumbi, San Siro ou do Santiago Bernabéu. Nenhum deles esperava o toque de letra, a arrancada fulminante, a finalização precisa no canto do goleiro. Esperavam outra coisa. Uma palavra. Um sinal. Um testemunho.
O ex-jogador chegou quase anônimo, de roupas simples – camiseta básica, calça sem marca, tênis comum. Trocara o uniforme por algo que qualquer um ali poderia vestir. A bola, por uma Bíblia. As entrevistas protocolares por pregações de fé. Era outro Kaká.
O melhor jogador de futebol do mundo em 2007 ainda é capaz de provocar histeria. Mas já não havia câmeras, zona mista, flashes. Havia famílias inteiras – homens, algumas mulheres, crianças sentadas nos corredores da igreja que, naquela noite, parecia imitar um estádio.
Os gritos não vinham da arquibancada, mas ecoavam entre fileiras de cadeiras posicionadas para o astro principal. Não eram ofensas ao juiz nem cânticos de torcida: eram louvores de fé, clamores emocionados, palmas ritmadas que saudavam cada frase.
O templo, imponente como muitos dos estádios que Kaká conheceu em mais de duas décadas de carreira, estava lotado muito antes das 19h30 daquela sexta-feira, 14 de novembro, em Sorocaba, interior de São Paulo. Em vez de churrasco, bar ou música alta, havia culto. Em vez de cerveja, dízimo – não obrigatório, mas recolhido em caixas que desciam entre fileiras de assentos ocupados até o último espaço.
Trinta e dois minutos depois do início da cerimônia, o pastor chamou Kaká. Antes de assumir o púlpito, ele fez o que sempre fez: brincou, fez embaixadinhas com duas bolas da Copa do Mundo de 2026, assinadas e chutadas em direção à plateia. Houve empurra-empurra, disputa, quase como se valesse um gol. Um jovem do Rio de Janeiro, que viajara mais de 530 quilômetros, voltou para casa com outra lembrança – uma camisa autografada sorteada pelo próprio ex-jogador.
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Culto de Kaká em igreja no interior de São Paulo — Foto: Emilio Botta
A pregação tinha nome: “O poder da presença de Deus”. Antes de iniciar, Kaká subiu ao altar sozinho. Testou o microfone, observou as luzes, tocou o tablet onde estavam fotos e vídeos de sua carreira. Ensaiou, timidamente, o que diria a mais de 1.500 pessoas que ocupavam as cadeiras e também os corredores.
A voz saiu calma, mansa, quase introspectiva. Kaká andava de um lado para o outro, passos curtos, como se ainda aquecesse o corpo. Dividiu sua história em cinco capítulos. Em cada um deles, associava momentos decisivos a versículos bíblicos. Dizia que a fé havia sido escudo, bússola e resposta.
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Culto de Kaká atraiu multidão em igreja do interior de São Paulo — Foto: Emilio Botta
A primeira lembrança foi a queda na piscina, em outubro de 2000. Um acidente doméstico que poderia tê-lo deixado sem andar. Ficou três meses longe daquilo que mais amava.
– Não fiquei tranquilo de que seria jogador de futebol… Mas eu tinha paz – disse o ex-jogador ao público, que permanecia em silêncio.
O segundo capítulo foi o improvável. Em 2002, Kaká, ainda um menino do São Paulo, foi convocado para disputar uma Copa do Mundo ao lado de Ronaldo, Ronaldinho, Rivaldo, Cafu, Roberto Carlos, Dida, Denílson…
– Nunca imaginei que estaria ali – confessou.
A plateia murmurava, reagia a cada nome. Era como escutar uma escalação de um time impossível.
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Culto de Kaká em igreja no interior de São Paulo — Foto: Emilio Botta
Mas a vida não é feita só de vitórias. E Kaká não se esquivou das derrotas. Relembrou a final da Liga dos Campeões perdida para o Liverpool, em 2005, em uma virada histórica, e a queda para a França na Copa do Mundo de 2006.
– Foram as piores derrotas da minha vida – admitiu, com a voz mais baixa, o olhar para o chão, como quem revive o lance que ainda dói.
Antes, falou sobre o dia em que pediu para sair do São Paulo, fruto da resposta de uma oração. Contou que não tinha o sonho de jogar em um time específico. Disse ao presidente Marcelo Portugal Gouvêa:
– Gostaria que o senhor me vendesse.
E ouviu de volta:
– Você sabe quem joga na sua posição lá? Vai ficar no banco do Rivaldo e do Rui Costa.
Mesmo assim foi para o Milan. E chegou ao topo. A imagem exibida no telão dizia mais que qualquer palavra: Kaká, melhor jogador do mundo. Messi, segundo. Cristiano Ronaldo, terceiro – com uma expressão contrariada que arrancou risadas quando ele comentou:
– A cara do Cris olhando o terceiro lugar é legal…
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Kaká comenta premiação de melhor jogador do mundo de futebol durante culto — Foto: Emilio Botta
Depois disso, o abismo. A pior contratação da história do Real Madrid. Quatro anos de crise de identidade. Sem títulos, sem Champions, sem prêmios individuais, sem reconhecimento. Apenas dúvidas.
– Era muito difícil levantar da cama, ver notícias suas nos jornais todos os dias. Quem eu sou? O melhor do mundo? Ou uma das piores contratações da história do Real?
Foi ali que encontrou a resposta que repetiria diante de todos:
– Descobri que a identidade é o nosso maior bem. Eu não era o melhor jogador do mundo nem a pior contratação. Eu era filho de Deus.
A igreja explodiu em “améns” e “glórias”.
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Kaká detalhou os ensinamentos que teve com passagem frustrada pelo Real Madrid — Foto: Emilio Botta
Kaká também falou sobre teologia – formação que realizou em silêncio. Ele não se autodenomina pastor. Não pertence a uma denominação específica desde que deixou a Igreja Renascer. Segue apenas testemunhando, nas mais diversas igrejas, a mesma história.
Quando o culto terminou, o altar virou túnel de vestiário. Kaká foi cercado por pessoas que estendiam camisas, bíblias, celulares. Queriam autógrafos, fotos, um toque, um sorriso.
Foram necessários onze minutos para atravessar poucos metros. Quando a porta se fechou, ele voltou a ser Ricardo Izecson dos Santos Leite. Não o menino prodígio. Não o melhor jogador do mundo. Não a pior contratação da história do Real Madrid. Apenas um homem que acredita ter sido chamado para outra partida.
E que agora joga para um público que não grita gol, mas diz “amém”. Simplesmente um filho de Deus.
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Kaká é cercado por fiéis e fãs após culto em igreja no interior de São Paulo — Foto: Emilio Botta
Por Emilio Botta — Sorocaba, SP
